A Revolução Digital na Saúde

Vivemos uma transformação acelerada que vem sendo chamada de quarta revolução industrial. A primeira revolução industrial foi deflagrada pela invenção da máquina a vapor e sua aplicação à produção e aos transportes, substituindo a força humana pela força mecânica. O mundo ficou definitivamente pequeno com o surgimento das ferrovias e dos navios a vapor. A indústria passou a ocupar o centro dinâmico da economia, com as fábricas substituindo as oficinas de artesanato e promovendo profundas modificações na vida social. O campo se especializou para servir à indústria com matérias-primas, acabando com a pequena produção e expulsando a mão de obra para as cidades, que passaram a atrair milhares de pessoas. Foi o início da era moderna.

A segunda revolução industrial ocorreu no final do século 19, com o advento da eletricidade e da linha de montagem, dois fatores que permitiram ampliar a escala de tudo o que é feito e pensado. A produção industrial cresceu e se acelerou, promovendo a redução dos preços de produtos e o consumo em massa As cidades foram iluminadas, o tempo de estudo da população cresceu, bem como a oferta de cursos técnicos. Surgiu o automóvel e com ele as rodovias e a ideia de tempo livre e de lazer. Logo vieram o rádio, o cinema e a indústria do entretenimento.

A terceira revolução industrial, a partir dos anos 1960, tem no seu centro o desenvolvimento e a progressiva popularização dos computadores, com uma crescente digitalização das várias facetas de vida. As redes de computadores espalharam-se por todas as esferas produtivas, com a automação industrial e dos serviços. O telefone celular e a internet revolucionaram as comunicações, radicalizando a globalização.

A quarta revolução, na virada do milênio, é um acúmulo de tudo isso e de um salto de qualidade. É marcada pela inteligência artificial, a disseminação da robótica, a internet das coisas, os veículos autônomos, a nanotecnologia, o armazenamento de energia e uma série de novas ferramentas e tecnologias impulsionadas pelo aumento da velocidade de processamento dos dados, pela redução dos custos e pelas possibilidades trazidas pelas conexões entre os dispositivos tecnológicos.

A fusão dessas tecnologias e sua interação entre os domínios físico, digital e biológico que tornam a quarta revolução industrial fundamentalmente diferente das revoluções anteriores. A quarta revolução industrial é a era das coisas, serviços e pessoas se conectando através de redes inteligentes. Espaços também pode ser inteligentes, veículos, residências, empresas, escolas, cidades. É uma época de aprofundamento das inovações no campo da biologia, particularmente na genética e da chamada biologia sintética, com a capacidade de modificar organismos existentes alterando seus códigos genéticos, e de criar organismos personalizados e adaptá-los a condições adversas.

Aprendizado de máquina para proteger a visão

O risco de perder a visão e de não ser diagnosticado a tempo é uma ameaça comum em muitos países. Para prevenirem novos casos e oferecerem suporte aos que convivem com as consequências da perda visual, foram desenvolvidos softwares para rastrear pacientes com doenças que potencialmente levam à cegueira. Ensaios clínicos mostraram que esse sistema está habilitado a triar com sucesso muitas doenças oftalmológicas com grande de margem de acerto.

A inteligência artificial e o aprendizado de máquina são utilizados para ensinar o sistema operacional a reconhecer sinais e sintomas preditivos de doenças oculares e a identificar precocemente os pacientes em risco a partir do estudo de exames e informações fornecidos. A tecnologia tem o potencial de mudar a forma como os profissionais realizam exames oftalmológicos e pode ajudá-los a priorizar os pacientes com doenças oculares mais graves antes que ocorram danos irreversíveis. Com o tratamento certo na hora certa, muitos casos são evitáveis.

Tecnologias capazes de alcançar os pacientes em risco de cegueira, onde quer que estejam. Para isso, são necessárias pequenas câmeras especiais, mas de baixo custo, smartphones e banda larga via satélite. Os softwares capturam em alta resolução imagens da retina do paciente e as envia criptografadas a oftalmologistas por meio de banda larga via satélite.

Aposta na telessaúde

Um dos desafios dos sistemas de saúde é reduzir a espera entre a consulta com o médico generalista e com o especialista. Um intervalo crítico, pois nessa fase os pacientes ainda não têm um plano de tratamento.

Outro recurso são as visitas e consultas virtuais, que têm se mostrado bastante úteis em situações de triagem de pacientes em meio a surtos de doenças infecciosas, por exemplo, e também no gerenciamento de pacientes com distúrbios mentais, ao permitir que os profissionais de saúde acompanhem seus pacientes em um sistema de comunicação online seguro, seja por meio de mensagens, seja por telefone ou vídeo. As visitas virtuais reduzem consideravelmente os deslocamentos de equipes de saúde ou de pacientes, diminuem a demanda nos ambulatórios e melhoram a satisfação tanto dos provedores de saúde quanto dos pacientes. Elas também se aplicam ao processo de renovação de medicamentos, de explicação de resultados de exames de saúde, para avaliação de pro­blemas de pele e alergias, gripes e resfriados, e de acompanhamento de pacientes com doenças crônicas, de saúde mental e de educação para saúde.

Os tablets também fazem parte do arsenal digital que pode auxiliar os clínicos gerais a fazer rastreamentos e identificar por exemplo, alterações mentais na população atendida. São esses prestadores de cuidados primários que rastreiam, diagnosticam e estabelecem a jornada desses pacientes no sistema. Por meio dessa interface portátil, os médicos aplicam questionários padronizados enquanto os pacientes aguardam em sala de espera. As respostas tendem a ser mais espontâneas do que aquelas obtidas em entrevistas presenciais e são usadas para atualizar o registro médico eletrônico em tempo real.

Isso auxilia na identificação de pessoas com transtornos como ansiedade, pressão e outras enfermidades. Para as equipes médicas, essas avaliações apoiam um quadro mais abrangente do estado de saúde mental do paciente, indicam o risco potencial de suicídio e reduzem a probabilidade de a condição do paciente ser diagnosticada erroneamente.

Dependendo da gravidade do problema, os pacientes podem ser encaminhados a especialistas e programas de apoio na comunidade. Aliás, o processamento dos algoritmos em tempo real pode gerar alertas para as mais diversas condições. Tudo é uma questão de estabelecer prioridades e informá-las aos programadores.

A expansão da telemedicina

A telemedicina e o conjunto de tecnologias relacionadas a ela estão inseridos no cotidiano da saúde brasileira de muitas maneiras e possuem grande potencial para se expandir. De modo informal, muitos médicos praticam a telemedicina há tempos ao esclarecerem dúvidas e prescreverem cuidados por meio de plataformas como WhatsApp, Messenger e Facetime, celular ou e-mail. Nesses dispositivos é grande o tráfego de imagens de problemas de pele, dúvidas sobre exames, orientações sobre como tomar os remédios ou como seguir o tratamento, dieta, exercícios. Essas atividades multiplicam-se sem regulamentação e sem garantia de proteção dos dados do paciente ou de que o atendimento será registrado nos prontuários, como ocorre nas consultas presenciais. Há, inclusive, especialistas que não consideram essas atividades como telemedicina por não transcorrerem em ambiente seguro.

Oficialmente, hospitais e planos de saúde aderem cada vez mais aos serviços de teletriagem e teleorientação. A teletriagem é usada para orientar pessoas com sintomas em sua jornada pelo sistema. Dependendo da gravidade, elas são direcionadas a um hospital ou a marcar uma consulta, por exemplo. Outra modalidade que começa a ser explorada pelas operadoras é a teleorientação pediátrica para tirar dúvidas simples. Em casos de maior gravidade, um médico pode ser enviado ao domicílio ou a criança levada ao hospital.

Entre as múltiplas aplicações da telemedicina, uma das que mais avança é o telediagnóstico. Depois de uma etapa inicial de adoção de recursos de automação e plataformas para análise de exames de imagem e patologia e emissão de laudos à distância, os laboratórios começam agora a agregar inteligência artificial a esses processos. Isso amplia a capacidade para gerar dados e buscar nos bancos de dados as respostas para perguntas novas e complexas.

Outro formato de serviços de telemedicina que tem contribuído bastante para a melhoria do atendimento são os pacotes oferecidos por centros de referência para suprir necessidades de hospitais que carecem de algumas especialidades. Um desses pacotes oferece, por exemplo, todas as manhãs, visitas virtuais de médicos neurologistas e cardiologistas a pacientes internados em UTI de diversos hospitais. A visita é realizada em parceria com o médico generalista que, na maioria dos casos, leva um tablet ou um celular por meio do qual se conecta com a equipe de profissionais para discutir a condição dos pacientes e adotar as condutas necessárias. O resultado desse encontro melhora o prognóstico dos pacientes e pode salvar vidas.

Mas não é só por terra que a telemedicina reduz as distâncias para disseminar conhecimento e melhorar a qualidade do atendimento. Desde 2014, ela alcança também as plataformas de petróleo no meio do oceano, onde os trabalhadores podem realizar consultas e serem orientados sem a necessidade de desembarcarem.

As teleconsultas, aliás, são a forma de telemedicina com maior potencial de expansão, por vários motivos. Um deles é a empatia dos pacientes com o meio.

Mais uma modalidade de telemedicina praticada é a teleconferência cirúrgica, que promove o acompanhamento remoto de cirurgias e exames invasivos feitos por um especialista experiente para ajudar na tomada de decisões durante o procedimento. As telecirurgias, em que um médico pode operar a distância controlando as pinças de um robô cirurgião inseridas no organismo do paciente, exigem treinamento altamente especializado e equipamentos muito caros dos dois lados, o que dificulta sua realização.

Para melhorar a captura de dados para a prática da medicina a distância, novos dispositivos começam a surgir. Em geral, esses kits são compostos de câmera, termômetro, e aparelhos modernos com encaixes para estetoscópio. Há também sensores que podem ser colados na pele, na região do peito, para monitorar sinais vitais. Eles detectam, por exemplo, mudanças súbitas nos parâmetros de saúde. Outros recursos transmitem imagens de ultrassom captadas por médicos, paramédicos ou enfermeiros em casos de urgência, que podem ser enviadas diretamente para o smartphone, tablet ou computador do médico. Em relação aos exames, com a ajuda de aparelhos para capturar imagens e sensores colados ao corpo para obter dados, o médico terá acesso às informações do paciente. Depois, na hora de prescrever exames e remédios, é possível assinar digitalmente o documento e enviá-lo ao paciente, à farmácia ou a uma central de distribuição que poderá entregar o remédio na casa do paciente.

Obviamente, a telemedicina produz mudanças positivas, mas a sua adoção também implica a realização de investimentos. Para se fazer reuniões por vídeo conferência, existe um gasto inicial com infraestrutura e softwares. Há também uma curva ascendente dos médicos que deixam consultório particular e passam a ser empregados porque não conseguem custear o investimento em prontuários eletrônicos e estruturas para a prática da telemedicina, como a gravação de todos os atendimentos.

A Formação Médica na era Digital

As transformações proporcionadas pela inteligência artificial só serão consolidadas se forem acompanhadas por profundas mudanças culturais. É assim com todas as mudanças que quebram paradigmas. Por essa razão, de nada adiantam os algoritmos e a interpretação do mundo feita pela tecnologia se os futuros médicos, gestores de saúde, pacientes e sociedade não entenderem que seus benefícios só serão efetivos se houver um pacto pela mudança. Isso significa alterar hábitos e vícios de pensamento em todas as áreas e adotar novos conceitos e comportamentos. A inteligência artificial e seus resultados exigem uma nova forma de pensar e trabalhar.

Para funcionar adequadamente, a saúde necessita que cada engrenagem de sua cadeia esteja sintonizada com a nova ordem de organização. Uma das peças mais importantes do sistema continua sendo o médico. No entanto, para exercer seu papel em um cenário completamente diferente daquele que conhecemos hoje, o médico do futuro precisa de outro tipo de treinamento. Ele deve incluir, obviamente, o aprendizado básico sobre anatomia e outras disciplinas. Mas é fundamental que desde os primeiros semestres do curso ele tenha contato com os princípios da inteligência artificial e também com recursos tecnológicos, alguns disponíveis em qualquer lugar, outros ainda ofertados por poucos centros de saúde. Além disso, o profissional de saúde que deseja ser bem sucedido tem a responsabilidade de olhar-se também como um gestor. O médico que se atém a apenas checar a agenda de consultas e a atender seus pacientes não tem mais lugar.

Importantes entidades médicas começam a promover as mudanças necessárias para que surja essa nova geração de médicos empreendedores e conscientes do papel que desempenham dentro da cadeia de saúde. Basicamente, diante das necessidades emergentes, o modelo atual é considerado ineficiente, inflexível e comprometido pela falta de um aprendizado centrado no aluno. O ensino é focado em testes de performance em vez de analisar a capacidade de desenvolvimento de habilidades e de capacidades profissionais de cada estudante individualmente. Também não há estímulo para aplicação de conhecimento e para a resolução de problemas.

A difusão das informações por meio digital mudou também o perfil do doente. Hoje muito mais informado, tem também maior poder de decisão sobre o que fazer em relação à sua saúde. O modelo vertical, no qual o médico ficava no extremo superior e o paciente, no inferior, acabou. A relação é cada vez mais horizontal, com ambos discutindo e compartilhando as responsabilidades pelas decisões, o que exige dos médicos mudança comportamental. Por isso a necessidade de desenvolver cada vez mais a capacidade de socialização.

Uma parcela importante dos profissionais da saúde não tem a compreensão do impacto negativo da indicação de exames desnecessários para a sustentabilidade do sistema e para o próprio paciente. Muito dessa situação é decorrente de uma mentalidade ainda preponderante de uma mecânica que remunera por serviço e não por desfecho. Outro agente responsável pelos pedidos de exames dispensáveis é o próprio paciente. Muitos, ainda que de forma equivocada, não se conformam em sair de uma consulta sem um pedido de exame e buscam atendimento de outros especialistas até que um deles solicite uma lista de testes. Nesses casos, erram os médicos, que cedem aos pacientes, e estes que insistem em procedimentos sem necessidade. Como vários profissionais não se veem como parte do sistema de saúde, eles desconsideram que o uso do laboratório terá um custo que será repartido, recaindo sobre todos. Nesse contexto, não se pode deixar de comentar que a vinculação idealizada pelos pacientes entre o pedido de exames e a sensação de ter sido bem atendido é um sinal das diversas fragilidades que estão embutidas na relação médico e paciente.

É verdade que os diagnósticos são feitos de maneira mais rápida e precisa do que antes, mas o abuso em procurar as respostas na tecnologia pode levar também ao aumento de posturas intervencionistas que não agregam qualidade ou valor à vida das pessoas. Enfim, falta o discernimento de separar o que é valor do que é abuso, perdendo, assim, o foco no paciente e a capacidade de enxergá-lo como uni todo.

Ética e Segurança de Dados

A chegada da inteligência artificial na saúde despertou questões éticas e legais sobre as quais nunca havia se pensado. Quem é o dono dos dados coletados? O paciente, o médico, o prestador de serviço? Quando termina a privacidade e começa o direito ao uso de informações sobre indivíduos? Como assegurar que os algoritmos não sejam criados de acordo com bases que resultarão em conclusões incorretas? De que maneira fica a relação entre o médico e o paciente quando entre eles há um diagnóstico ou uma proposta de tratamento apresentada por um software? Essas são apenas algumas das perguntas que estão na mente dos estudiosos desde que os sistemas inteligentes começaram a se multiplicar na prática médica.

O surgimento de novas tecnologias sempre impulsiona discussões éticas. Na área médica, especialmente, elas costumam ser intensas porque envolvem a discussão sobre o valor da vida de acordo com óticas diferentes, muitas vezes balizadas segundo posições filosóficas ou religiosas muito bem estabelecidas.

Muitos dilemas estão em debate. Um dos primeiros diz respeito à dificuldade de atribuir valor ou um número a sensações humanas, como a dor, com base em critérios como custos e expectativa de resultado. Como conjugar em um mesmo algoritmo circunstâncias tão distintas? De que forma assegurar que o modelo adotado não privilegie a redução de custos ou leve em consideração a condição financeira do paciente para arcar com o tratamento? Robôs são robôs. Não possuem habilidades humanas, como a de apresentar empatia diante da dor. Além disso, é muito difícil para o paciente entender a lógica de uma máquina, o chamado dilema da caixa preta, e aceitar um diagnóstico ou tratamento indicado pelos sistemas. Os especialistas defendem ainda que os profissionais de saúde devem entender a inteligência artificial, este terceiro elemento na relação entre médicos e pacientes, como algo complementar ao exercício diário da medicina, não prescindindo de usar seus próprios valores e informações que possuem a respeito da história do paciente. Também se pergunta de quem é a responsabilidade em casos nos quais a máquina aponta uma conclusão errada. Do médico, do provedor do serviço ou do desenvolvedor?

Não há respostas definitivas a nenhuma dessas questões. Uma delas, proposta pelos próprios profissionais, diz respeito ao lugar que passam a ter em meio à revolução digital. Que papel caberá ao médico em um mundo de máquinas? Afinal, o que deve fazer um provedor de saúde nesses casos? O principal argumento dos especialistas foi o de que a máquina jamais superaria suas habilidades no manejo das medicações e, principalmente, nos casos de imprevistos.

Outro conjunto de questionamento consiste na busca de soluções inteligentes para garantir a proteção dos dados. As respostas a esta discussão, assim como àquelas de ordem moral, são urgentes. Não é por outra razão que o segmento de inteligência artificial em saúde tornou-se rapidamente um dos primeiros da lista dos mais atacados por hackers no mundo todo. As informações obtidas com a invasão dos sistemas médicos são uma mercadoria valiosa porque tornam possíveis o roubo das identidades das vítimas possibilitando, aí sim, a obtenção de dados financeiros de quem foi roubado. Além disso, os dados facilitam a produção de fraudes contra seguradoras, invocando sinistros de saúde que não existem.

Elementos para um Plano Diretor de Digitalização da Saúde

Os países mais desenvolvidos já despertaram para a necessidade de uma política de Estado voltada para a digitalização da área saúde, que pode ser ou não integrada a um planejamento mais amplo de promoção da internet das coisas. Em graus diferentes de abrangência, esses países têm planos e metas governamentais voltadas para promover o desenvolvimento dos recursos tecnológicos que viabilizem a digitalização da saúde, bem como um conjunto de ações para incentivar o acesso dos cidadãos a esses recursos. Isso envolve desde financiamento para indústria de equipamentos computadorizados até o estímulo ao surgimento de soluções de atendimento, de softwares e de aplicativos. Portanto, a política de digitalização da saúde deve incluir um plano diretor que oriente como ela deve se desdobrar em intervenções coordenadas.

Infraestrutura

A infraestrutura de tecnologia da informação é a base para a digitalização da medicina e o compartilhamento efetivo de dados clínicos. E o pressuposto para que essa troca aconteça é a conectividade. Todo centro médico deve ser informatizado e ter acesso à internet de alta velocidade. Isso envolve dispor de servidores, que são computadores com grande capacidade de armazenamento, um conjunto de equipamento para as variadas tarefas do dia a dia, como computadores de mesa, notebooks, dispositivos móveis, além de ter acesso a uma rede de telecomunicações de grande capacidade e extensa capilaridade.

Da mesma forma, o cidadão comum, usuário do sistema de saúde, deve ter acesso à internet de banda larga por meio de smartphones, tablets e computadores, além de dispositivos específicos para o monitoramento de saúde, quando necessários. Para garantir a conectividade é preciso um investimento pesado em potentes redes de micro ondas e de fibras áticas, que são as vias de tráfego da informação digital. Linhas de crédito voltadas para o desenvolvimento de equipamentos para todas as camadas do sistema, de grandes bancos de dados a equipamentos eletrônicos domésticos, também devem ser previstas em um plano para a digitalização da medicina.

Interoperabilidade, padronização e análise

A existência de múltiplos sistemas de informação instalados, a diversidade de fornecedores, os vocabulários em uso, a diversidade de propósitos de coleta e de uso da informação em saúde exigem estruturas e interfaces que viabilizem a interoperabilidade desses sistemas entre si. Um plano diretor para a digitalização da saúde deve definir padrões e processos para garantir isso. É essa interface que permite a coleta, o armazenamento de dados e seu processamen­to. Importante também seria procurar formas de estimular os provedores de saúde a buscarem essa interoperabilidade.

Uma das primeiras tarefas da construção de sistema digital de saúde é um projeto de big data para realizar a leitura, a depuração e a integração dos dados de saúde existentes, reunindo-os em um único banco de dados. Isso inclui prontuário eletrônico único de pacientes, com os resultados de seus exames, incidência de doenças, resultados de tratamentos, alcance de diferentes tratamentos ou iniciativas, repositórios de medicamentos. É importante reunir também os dados das despesas, para que se possam avaliar os custos reais de cada tratamento, tanto para evidenciar, e poder evitar, os desperdícios, quanto para, principalmente, calcular os custos por desfechos realistas.

Um plano digital deve prever o desenvolvimento indispensável de uma robusta capacidade de analisar esses dados e aprender com eles, por meio de análise de dados e inteligência artificial. É dessa forma que um conjunto de informações presentes em prontuá­rios eletrônicos individuais pode transformar-se em evidências médicas e orientar protocolos de ação das equipes de saúde. E quando se fala em big data também é preciso planejar a área de armazenamento, isto é, um ambiente flexível no qual os dados serão guardados.

Recursos Humanos

Um sistema de medicina digital requer a capacitação de todos aqueles que vão utilizá-lo, cidadãos, pacientes, profissionais de saúde e gestores precisam estar preparados para aproveitar ao máximo o acesso aos dados compartilhados. Além dessa capacitação geral, é preciso formar profissionais, de saúde e das áreas digitais, para todos os níveis e esferas do sistema. Pode ser difícil formar pessoas que conheçam as duas áreas em profundidade, mas o pessoal de transformação digital precisa entender de saúde e os profissionais de saúde precisam entender as possibilidades da digitalização para sua área. Eles devem participar do desenho, desenvolvimento, implantação, manutenção e monitoramento de sistemas, assim como da facilitação do relacionamento com os demais atores, em todos os aspectos relativos às tecnologias e à informação de saúde.

A medicina baseada em evidências trabalha com protocolos e permite total transparência na relação do paciente com as equipes de saúde, médico, enfermeiros, centros de exames de imagem e de análises clínicas. Para participar da transformação digital, um profissional de saúde deve saber ser transparente, trabalhar em equipe, seguir protocolos e recomendações. Isso tem de ser o padrão, mas nem todas as universidades estão preocupadas em formar um médico preparado para os novos tempos.

Além disso, embora uma parcela significativa dos usuários do sistema de saúde use celulares e computadores de forma intensiva, caberá aos centros médicos ajudar aqueles que não têm domínio dos equipamentos eletrônicos a tirar proveito deles e dos dispositivos de monitoramento.

Com foco na eficiência do sistema e na qualidade, a expectativa é promover a integração das novas ferramentas à vida do profissional da saúde para que tenha as condições e as informações adequadas para humanizar o atendimento. Entre elas, tempo para uma boa conversa, bons instrumentos de diagnósticos e suporte de inteligência artificial.

Precisamos aproveitar as oportunidades de tecnologia que os desafios nos oferecem e criar condições para abordá-los adequadamente. A experiência internacional mostra que a disseminação das soluções digitais precisa ser conduzida por um projeto de inclusão que ajude sua adoção em todos os níveis. Da facilitação do acesso em locais públicos ao desenvolvimento de manuais para explicar as tecnologias e explorar sua implementação em áreas como a engenharia, a comunicação, a pesquisa científica, a medicina, as artes, a agricultura e a indústria.

Evidentemente, não se pode ignorar que a tecnologia traz consigo vários riscos. Se for usada de forma superficial, para digitalizar a burocracia ou robotizar o atendimento e as interações humanas, fará com que os processos se tornem ainda mais impessoais. Esse é um caminho que não gera o resultado que precisamos.

A proposta que trazemos busca exatamente o contrário. A tecnologia deve ser pensada e aplicada a serviço do melhor relacionamento do profissional da saúde com o paciente, contribuindo para que a saúde seja mais humana.

O caminho é ampliar a cultura de uso de soluções digitais e suas melhores práticas. Assim teremos clareza, como sociedade, do potencial desses recursos para enfrentar os desafios emergentes deste século.

Fonte: CBN Recife

Autor: Lenildo Morais, mestre em ciência da computação pelo Centro de Informática da UFPE – Universidade Federal de Pernambuco, pesquisador Assert – Advanced System and Software Engineering (Research Technologies Lab) e gerente de projetos da Ustore, empresa do Porto Digital de Pernambuco.